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Jurisprudência contra campanha antecipada foi endurecida para Bolsonaro, mas não deve afetar Lula

Para Richard Campanari, sócio da CGSA e especialista em direito eleitoral, embora Lula tenha cometido um ilícito eleitoral mais grave do que Bolsonaro, a sanção não passará de uma multa

Presidente Lula durante Ato das Centrais Sindicais do Dia do Trabalhador,em que fez propaganda eleitoral antecipada para Guilherme Boulos| Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

As decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em casos envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2022 criaram uma jurisprudência linha dura sobre propaganda eleitoral antecipada, mas que dificilmente será aplicada para tornar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) inelegível no caso que envolveu o pedido de voto para o pré-candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos (Psol).

Até as eleições de 2022, somente era considerada propaganda eleitoral antecipada quando um candidato ou político vinculado a ele fizesse pedido explícito de votos até o dia 15 de agosto, quando se inicia a campanha eleitoral, de acordo com a Lei das Eleições.

Foi o que aconteceu no evento de comemoração do dia 1º de maio, no Itaquerão, em São Paulo, quando Lula pediu votos para Boulos, o que motivou a abertura de ações contra eles por propaganda eleitoral antecipada. “E eu vou fazer um apelo. Cada pessoa que votou no Lula em 89, em 94, em 98, em 2006, em 2010, em 2022 tem que votar no Boulos para prefeito de São Paulo”, disse Lula no evento.

Mas, em relação a Bolsonaro, a Corte Eleitoral alargou esse entendimento, tanto no caso da inelegibilidade pela reunião com os embaixadores estrangeiros para debater sobre as urnas e o voto impresso, quanto no caso de um culto em Cuiabá. Nessas circunstâncias, foi reconhecido que a mensagem total dos eventos ou o “conjunto da obra” era pré-campanha.

A Lei Eleitoral é objetiva ao considerar propaganda eleitoral antecipada quando há o uso de termos como “vote em” por candidatos e seus apoiadores. Além disso, no caso de Lula, a situação pode se complicar pelo fato de que se tratou de um evento pago indiretamente com recursos públicos (foram captados R$ 250 mil via incentivos fiscais da Lei Rouanet), transmitido pela empresa estatal de comunicação EBC e onde também se realizou o ato governamental de sancionar a isenção de Imposto de Renda para quem recebe até dois salários mínimos.

No entendimento de juristas ouvidos pela Gazeta do Povo, o ato de Lula teria sido, inclusive, mais grave do que o caso que tornou Bolsonaro inelegível por 8 anos. Em julho de 2022, o ex-presidente se reuniu com embaixadores para criticar e lançar dúvidas sobre o sistema eleitoral brasileiro. A reunião foi transmitida pelos canais oficiais do governo. O TSE entendeu que Bolsonaro fez campanha eleitoral antecipada e, portanto, condenou o ex-presidente por abuso de poder econômico e político.

Punição de Lula será diferente da aplicada a Bolsonaro

Mesmo assim, os especialistas afirmam que é pouco provável que Lula se torne inelegível como o ex-presidente, em razão da vontade política do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ao condenar Bolsonaro, a Corte eleitoral passou a mensagem de que teria tolerância zero para quem lançasse dúvidas sobre as urnas eletrônicas e o processo eleitoral.

O advogado André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão e digital, considera que pedir votos em evento no qual há dinheiro público, divulgado em canais de televisão públicos – mesmo que tenha havido apagamento posterior do vídeo -, é passível de ser interpretado como abuso de poder político, econômico e dos meios de comunicação.

Adriano Soares da Costa, advogado e autor do livro “Instituições de direito eleitoral”, concorda, mas pondera que Lula não terá a punição correspondente, pois, os ministros do TSE podem entender que o evento não teve alcance suficiente para influenciar o eleitor, que houve apenas um pedido pontual de votos e que, a fim de se configurar inelegibilidade, o abuso precisaria ser grave.

“Com isso, será considerado diferente do caso Bolsonaro no conteúdo e na forma, pois aquele envolvia alegação de divulgação de desinformação e o alcance foi considerado grande nas redes”, afirmou.

O advogado Richard Campanari, especialista em Direito Eleitoral, afirma que, embora Lula tenha cometido um ilícito eleitoral mais grave do que Bolsonaro, a sanção não passará de uma multa, a qual pode, inclusive, ser aplicada em seu valor mínimo. Tudo depende da interpretação dos ministros da Corte Eleitoral, já que, atualmente, o TSE tem feito análises diferenciadas dos casos, dependendo dos envolvidos e das circunstâncias, o que traz insegurança jurídica para o país, segundo ele.

Não é a primeira vez que o petista se utiliza dessa artimanha. Em 2010, ele foi multado por fazer campanha antecipada para a então candidata do PT à presidência, Dilma Rousseff. Em uma das ocasiões, ele disse que não citaria o nome da candidata para não ser mais punido e, quando a plateia respondeu gritando “Dilma”, Lula afirmou que, se recebesse nova multa, pediria para os eleitores pagarem: “se eu for multado, vou trazer a conta para vocês”, disse ele.

Jurisprudência do TSE varia conforme circunstância e candidato

Um exemplo da variação da jurisprudência conforme a circunstância e o candidato foi a proibição de um programa eleitoral de Bolsonaro em outubro de 2022, que se referia a Lula como “corrupto” e “ladrão”. Segundo o então ministro do TSE Paulo de Tarso Sanseverino, a prática violava a presunção de inocência de Lula.

No entanto, em setembro do mesmo ano, o plenário do TSE decidiu manter no ar seis vídeos nos quais Lula chama Bolsonaro de “genocida”, ao criticar a atuação do governo federal no combate à pandemia de Covid-19. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF) que integrava a Corte Eleitoral, alegou que as críticas de Lula a Bolsonaro estavam mantidas pelo direito de liberdade de expressão.

Reunião com embaixadores foi considerada campanha antecipada

Marsiglia avalia que a Corte exagerou e abriu uma jurisprudência agressiva na condenação de Bolsonaro à inelegibilidade. Em 18 de julho de 2022, o então presidente se reuniu com embaixadores de diversos países, em uma resposta à reunião que o próprio TSE havia realizado também com embaixadores para divulgar a segurança das urnas.

A Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE 11527), a partir da qual Bolsonaro foi julgado, contém alegações de que ele se valeu de seu cargo político durante a reunião e dos bens da União para impulsionar sua candidatura fora do período eleitoral.

A esse respeito, Adriano Soares afirma que a reunião foi um ato oficial, em local oficial, tratando de assunto oficial, sem pedido de votos, o que, de acordo com a lei, não configura propaganda eleitoral antecipada.

Na reunião, Bolsonaro discutiu com os embaixadores sobre o sistema eletrônico de votação, mais especificamente a impressão de comprovante de votação que havia sido aprovada em 2015 e que foi suspensa pelo STF em 2018. Ou seja, nada houve que pudesse ser chamado de propaganda eleitoral antecipada, já que discutir o sistema de votação não é um ato de campanha.

Mas essa não foi a interpretação do TSE. A Corte eleitoral inovou na jurisprudência ao conferir à discussão com os embaixadores a natureza de campanha eleitoral antecipada e de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação social. Esse tipo de condenação somente era aplicado após a comprovação de propaganda eleitoral antecipada, como, por exemplo, o que deverá ser caracterizado no evento em Lula pediu votos Boulos no 1º de maio.

Richard Campanari ainda explica que foram acrescidas diversas outras circunstâncias à ação pela inelegibilidade de Bolsonaro, tais como a disseminação de “informações falsas” sobre o processo eleitoral e “ataques” feitos aos ministros da Corte, o que, para o TSE, teria atingido “parcela significativa do eleitorado”. O “conjunto da obra” foi usado para caracterizar o abuso de poder político e econômico, e uso indevido dos meios de comunicação. Todas essas questões resultaram na ilegibilidade do ex-presidente.

Cabe questionar o real impacto causado pela divulgação dos vídeos da reunião nas eleições de 2022, em que mais de 156 milhões de eleitores estavam aptos a votar. O relatório que serviu de base para a ação contra Bolsonaro trouxe a informação de que os vídeos com as falas mais exaltadas do ex-presidente durante a reunião circularam no Facebook e no Instagram, onde tiveram 589 mil e 587 mil visualizações.

Participação de Bolsonaro em motociata e culto também alterou jurisprudência

Outro caso em que houve alteração da jurisprudência envolve a participação de Bolsonaro em uma motociata e em um culto da Assembleia-Geral das Assembleias de Deus no Brasil, em Cuiabá (MT). Durante o evento, Bolsonaro afirmou que, se fosse a vontade de Deus, continuaria com sua missão de estar à frente do governo federal. Ele ainda disse ter “certeza que, tendo vocês ao nosso lado, nós atingiremos os nossos objetivos”, e citou que “hoje temos uma luta do bem contra o mal”.

O TSE julgou que o “conjunto da obra”, incluindo a motociata e o discurso no culto, deixou claro que o ex-presidente havia antecipado um ato de campanha e citou as punições previstas no artigo 36-A da Lei Eleitoral (9.504 de 1997).

O artigo 36-A elenca uma série de atos, como a menção à candidatura e a exaltação de qualidades pessoais dos pré-candidatos que não configuram propaganda eleitoral antecipada, “desde que não envolvam pedido explícito de voto”.

Até então, o TSE considerava propaganda eleitoral antecipada somente as ocasiões nas quais havia pedido explícito de votos. Durante o julgamento, a ministra do TSE Maria Cláudia Bucchianeri aplicou a jurisprudência até então vigente e descartou a punição por propaganda antecipada.

De acordo com a ministra, as falas representaram um anúncio implícito de pré-candidatura, a exaltação de qualidades pessoais do pré-candidato e um pedido de apoio político, todas condutas permitidas no período pré-campanha, conforme o artigo 36-A da Lei das Eleições.

Mas ela foi voto vencido. Em sentido oposto, votaram os ministros Ricardo Lewandowski, Benedito Gonçalves, Carmem Lúcia e Alexandre de Moraes. Cármen Lúcia chegou a defender que a jurisprudência estava mantida, apenas com o novo direcionamento de que um conjunto de informações indique também pedido de votos.

André Marsiglia avalia que, se a Corte Eleitoral aplicar no pleito desse ano esse mesmo entendimento, possivelmente os atos de pré-campanha seriam inviabilizados em sua quase totalidade. No período que antecede as eleições, praticamente tudo que um pré-candidato faz está relacionado à sua campanha, a angariar apoios e simpatias.

Mas falta ao TSE uma linha sólida na jurisprudência, já que os precedentes variam conforme o caso, explica Adriano Soares. Ele ainda avalia que essa variação geram a sensação de insegurança e questionamentos sobre a neutralidade de um Tribunal essencial ao resguardo e proteção de democracia.

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