Tão logo o presidente Jair Bolsonaro (PL) encerrou sua participação nas comemorações, em Brasília, do Bicentenário da Independência, políticos opositores e formadores de opinião críticos a seu governo passaram a defender sua punição pela Justiça Eleitoral, em razão do uso de um evento cívico para defender sua reeleição. Nesta quinta-feira (8), o PDT, que tem como candidato à Presidência o ex-governador Ciro Gomes, saiu na frente dos demais partidos ao protocolar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) uma ação de investigação judicial eleitoral.
Conhecida como “Aije”, esse tipo de ação tem por finalidade apurar o eventual abuso de poder na disputa eleitoral, ilícito que, no limite, em caso de condenação, pode levar o político a perder sua candidatura ou o novo mandato, caso seja vitorioso, além de ficar inelegível por 8 anos. Outros partidos, como o PT e o União Brasil, também preparam ações semelhantes para punir Bolsonaro. Para avaliar as chances de esses processos levarem a medidas tão duras, a reportagem consultou especialistas no tema para projetar os cenários possíveis.
Embora não haja consenso sobre a efetiva prática de abuso e a eventual gravidade da conduta, condição necessária para uma cassação ou suspensão dos direitos políticos, é unânime entre eles a previsão de que a ação dificilmente seria julgada antes do fim das eleições. A Aijes mais importantes do período recente contra candidatos à Presidência – que tiveram como alvos o próprio Bolsonaro e a a ex-presidente Dilma Rousseff – tramitaram por mais de três anos até serem julgadas pelo TSE, todas elas resultando em absolvição.
No aspecto jurídico, todas as ações contra Bolsonaro pelo uso eleitoral do 7 de Setembro tendem a se basear nos mesmos dispositivos da Constituição e da legislação eleitoral que proíbem e buscam reprimir o uso da máquina pública em benefício próprio no pleito. Todas essas regras são mencionadas na ação do PDT e têm como princípio a garantia de igualdade de condições na disputa.
Uma das normas fundamentais, nesse sentido, é o artigo 37 da Constituição, que determina que a administração pública obedecerá, entre outros, aos princípios da moralidade e da impessoalidade. Em sua ação, o PDT aponta a violação a esse comando pelo fato de a TV Brasil, emissora estatal custeada com recursos públicos, ter transmitido uma entrevista ao vivo com Bolsonaro, no Palácio da Alvorada, na manhã do dia 7, na qual o presidente repetiu bordões de campanha, como o “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, e promoveu uma série de ações do governo que também são anunciadas nas propagandas eleitorais para captar votos.
O PDT ainda destacou o gasto de R$ 3,3 milhões para a organização e montagem do desfile cívico-militar na Esplanada dos Ministérios, que, na visão do partido, em vez de “louvar um fato histórico para o país”, acabou se transformando em “palanque eleitoral”.
“É inegável que o Senhor Jair Messias Bolsonaro se aproveitou do evento valendo-se de recursos públicos para promover a sua imagem perante os eleitores, o que caracteriza o abuso de poder econômico e político, consubstanciado em um fato de extrema gravidade”, diz a ação.
Outro artigo constitucional citado é o 14, que em seu parágrafo 9º ordena que uma lei complementar deverá definir os casos de inelegibilidade a fim de proteger “a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. Trata-se, no ordenamento jurídico, da Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/1990) e que, em 2010, alcançou ainda mais rigor ao ser atualizada pela Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010).
O artigo 22 da lei permite a qualquer partido, coligação, candidato ou ao Ministério Público acionar a Justiça Eleitoral para relatar fatos, indícios e circunstâncias, e a pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político. Aqui, o uso da TV Brasil e de recursos públicos para beneficiar Bolsonaro também poderia ser denunciado.
A Lei das Eleições (Lei 9.504/1997) é ainda mais explícita quando, no artigo 73, proíbe o uso de bens, materiais ou serviços da União, em benefício de candidato, e diz que, além de multa, o responsável ainda se sujeita à cassação do registro ou do diploma, documento que oficializa sua eleição e cuja perda acarreta a saída do mandato. O artigo 74 prevê a mesma pena àqueles que violam os princípios da administração pública referidos na Constituição.
Para Anna Paula Mendes, professora da pós-graduação de direito eleitoral da UERJ e do IDP, autora do livro “O abuso do poder no direito eleitoral”, ficou claro o abuso de poder político por parte de Bolsonaro no evento do bicentenário.
“Ocorreu a prática de um ato estatal com finalidade privada, não pública. Houve um gasto de dinheiro público muito grande para realização desses eventos, com atração de muitas pessoas para ver o desfile, além daquelas que acabaram atingidas pela veiculação do evento na TV. Houve um ato de campanha e não de presidente da República. Muito embora se diga que Bolsonaro foi para um palco ao lado para discursar, vejo que não há como dissociar onde terminou o evento público e onde começou o evento privado. Não resta dúvida que houve desvio de finalidade”, diz.
Ela lembra, por outro lado, que a punição com cassação ou inelegibilidade depende da aferição da “gravidade” da conduta pelo TSE. Até alguns anos atrás, a Justiça Eleitoral tinha como parâmetro para caracterizar essa gravidade a potencialidade do ato para alterar o resultado da eleição. A Lei da Ficha Limpa acabou com essa exigência e, desde então, o tribunal passou a avaliar caso a caso o grau de reprovabilidade da conduta.
“É um conceito muito problemático, porque é muito aberto. Isso é sempre preenchido no caso concreto e muitas vezes de modo casuístico. A gente não tem critério objetivo. Vai muito da compreensão do julgador. O que é grave para um vereador pode não ser para um candidato presidencial.”
A professora cogita que, numa análise do caso do bicentenário, o TSE possa aferir a gravidade observando a quantidade de pessoas no ato, os gastos públicos realizados, o uso da TV estatal para a transmissão, além da própria violação aos princípios da moralidade e impessoalidade. Mas observa que, no aspecto qualitativo, o grau de reprovabilidade pode variar no tempo conforme o entendimento dos ministros e o momento político do país.
Se, por um lado, a demora usual para o julgamento de uma Aije pode atenuar, com o passar do tempo, a percepção pública da gravidade do ato, por outro, é possível que, dependendo do momento político do país, os ministros considerem a conduta altamente reprovável. Dá como exemplo o julgamento de 2021 no qual o TSE passou a repudiar de forma mais intensa a propagação de chamadas “fake news” contra as urnas eletrônicas, o que levou a maioria dos ministros a condenar, com cassação e inelegibilidade, o deputado estadual paranaense Fernando Francischini, em razão de uma live no dia da eleição de 2018 em que apontou fraude nas máquinas.
“Em 2021, a necessidade de combater fake news era mais forte que em 2018. O momento político do julgamento pode sim influenciar o resultado”, diz ela.
Um fator que conta a favor de Bolsonaro, de qualquer modo, é a natureza extrema de uma punição como a cassação de mandato presidencial, algo que nunca ocorreu na história. Uma decisão do tipo implica na possibilidade de um grupo muito pequeno de julgadores – bastam 4 entre os 7 ministros do TSE – invalidarem uma escolha de dezenas de milhões de eleitores, e ainda suspenderem por 8 anos seus direitos políticos.
O advogado e consultor Richard Campanari, especialista em direito eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), entende que as condutas de Bolsonaro no bicentenário não configuram abuso de poder político. Ele diz que houve uma preocupação do presidente em separar sua participação do desfile cívico-militar do ato de campanha. “Ele retira sua faixa e se desloca para outro palanque. Conseguiu separar as funções, e criou distinção bastante evidente, até do ponto de vista simbólico, talvez prevendo questionamentos. É bem provável que tenha feito isso acolhendo orientações de um especialista”, diz ele.
Campanari também sustenta que nada impedia que outros presidenciáveis aparecessem no mesmo ato na Esplanada ou mesmo em locais diferentes em que eram realizadas as comemorações do 7 de Setembro. “É muito mais grave o que Dilma fez, cercando a Esplanada para impedir que as pessoas pudessem acompanhar o desfile”, lembra o advogado. Em 2015, a então presidente restringiu o acesso ao desfile, sob a alegação de garantir a segurança, por causa de protestos contra seu governo. “Qual o sentido de gastar recursos de tamanha magnitude para realizar o evento, sem permitir que os brasileiros participem”, critica.
Ele ainda se opõe à possibilidade de punição com o argumento de que um dos princípios básicos que norteiam a atuação da Justiça Eleitoral é a “mínima intervenção” na escolha dos eleitores. Acrescenta que muitas vezes cria-se artificialmente uma percepção de gravidade no fato em razão de mera oposição política de adversários que buscam desgastar o presidente, e não por razões jurídicas. “Qualquer gota d’água vira oceano. Sob o aspecto jurídico, importância é diminuta. Não vejo ilícito que comprometa candidatura ou eventual mandato”, conclui.
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Matéria originalmente publicada por Gazeta do Povo, em 8 de setembro de 2022